ELOGIO DA FILOSOFIA DA LIBERTAÇÃO

A Frantz Fanon, Robert Nesta Marley e Mariele Franco (1)

Afirma-se que o século XX teve, no plano filosófico, uma destinação vinculada ao giro linguístico ou à virada ontológica. O giro linguístico se caracteriza pela ênfase na transcendência da linguagem que, entendida como medium, alberga as condições do entendimento mútuo aos quais pragmaticamente estão todos vinculados de tal forma que a corrosão dessas premissas só é possível com a destruição das próprias condições do diálogo. A linguagem figura não mais como representação do mundo, uma espécie de reflexo passivo, mas como estrutura simbólica do mundo. Essa tendência de encontrar na linguagem um terreno a salvo da colonização da razão instrumentalizada à lógica do capitalismo encontra na teoria da ação comunicativa de Habermas uma consumação plena.

A linguística moderna sempre se inseriu na relação complexa entre a semântica, entendida como teoria da referência extra-linguística, e a pragmática, que consolida a mirada nas situações concretas dos atos de fala de forma a vislumbrar um a priori compartilhado repassado por tradições culturais, decisões institucionais. Na pragmática, o mundo do inteligível é destranscendentalizado na medida em que as antecipações pragmáticas das situações de fala indica o mundo da vida como pano de fundo que condiciona a experiência social.

Haurindo em Husserl o conceito de mundo da vida, articula-o como pano de fundo das experiências sociais, como uma camada pré-temática de sentido que funciona na qualidade de posição prévia para a compreensão e para orientação social na medida em que traduz uma forma de vida redutora da contingência. Nesse sentido mais amplo, o mundo da vida serve para explicar a forma do laço social e erigir o agir comunicativo em que as interações intersubjetivas prefiguram o entendimento enquanto acordo comunitário.  O agir comunicativo, ao implicar na superação do esquema sujeito-objeto, aposta no paradigma da intersubjetividade em que os sujeitos sociais, na medida em que vinculados à pretensão de verdade, podem, mediante o diálogo, chegar ao entendimento, isto é, ao acordo sobre uma coisa no mundo.

A entronização por Habermas da categoria de mundo da vida como pano de fundo para uma ação comunicativa voltada ao entendimento mútuo e à correspondente ideia de que, na fatualidade, existe a idealização virtual do consenso constitui uma forma de fuga diante da reificação do trabalho bem como da criação de uma zona espiritual cujo efeito persuasório diminui quanto mais se torna ilusória.

A ideia de que existem expectativas contrafácticas nas quais as condições do diálogo já estão presentes e que funcionam como pano de fundo ineliminável resta idealista. Ainda que Habermas reconheça formas violentas que corrompem o discurso, a identificação da linguagem como lugar da razão que universaliza o acordo na medida em que, na instauração do visar ao outro, subjaz as condições transcendentais do diálogo e do entendimento, não ignora as relação de poder instaurada de forma violenta? Contrafático é o que, mesmo não tendo efetividade, mesmo contrariando a dinâmica dos fatos, permanece ainda válido. Não é uma forma de idealizar uma comunidade para evitar o confronto com as formas fáticas de dominação? A idealização da linguagem como lugar do acordo não corre sempre o risco de santificar a dominação, fática, dos espoliadores? Não seria a ênfase no medium linguístico uma forma de reservar uma ilusória forma de comunidade para fugir da dor de milhões de pessoas no cotidiano, isto é, da ausência de comunidade ali onde a questão da reprodução da vida é central?

Ao substituir a categoria do modo de produção pelo mundo da vida, Habermas, esse grande filósofo, se afasta completamente do marxismo. O itinerário de Habermas da teoria crítica até à noção de uma democracia consensual na forma de autolegislação concretizável mediante procedimentos em que, pela co-originariedade da autonomia privada e da esfera pública, a formação da opinião e da vontade seja a mais abrangente de forma a levar a conclusão provável de que todos aquiescem com o conteúdo produzido, indica uma aproximação com o pensamento liberal. A legitimidade se confunde com a gênese democrática das leis. Não se vê, portanto, qualquer debate da economia e das contradições da sociedade. Na verdade, o próprio Habermas afirma que sua teoria se faz para evitar o risco do dissenso. Mas, conforme diz Rancière, as formações sociais não se resolvem numa conta perfeita e que a placidez das classes dominantes pode ser interrompida pela emergência dos não contados, emergindo as contradições. Enfim, se há política é porque o dissenso pode ganhar figura, questionando a ordem colonial.

Quanto ao destino ontológico, Heidegger inaugurou, colhendo as melhores intuições de Husserl, a compreensão do ser.  A distinção entre o como apofântico enquanto terreno dos juízos lógicos estruturado na relação entre um sujeito e um predicado, o que na figuração simbólica se expressa “A é B”, e o como hermenêutico enquanto dimensão existencial que condiciona a enunciação, indica uma referibilidade à vida prática.

De fato, é um avanço reconhecer que um juízo tal como ‘o céu é azul’ não se consubstancia sem uma visão prévia, posição prévia do que seja céu e do que seja azul. Heiddeger, em diversas passagens, afirma que a vida prática, mesmo que não se expresse em enunciados, ainda sim é teórica.

Aqui, verifica-se que o como hermenêutico enquanto vida antepredicativa encerra sentidos prévios emergidos da experiência e não de celestiais conceitos, avançando para a retomada de aspectos que uma teoria do juízo é incapaz de responder. Não obstante, em Heidegger, o mergulho na vida prática sempre está associado ao prostrar-se decadente à lógica das coisas, e pela fuga diante dos afetos, como a angústia, que poderiam indicar uma abertura ao mundo e ao questionamento.

O tema do cotidiano revela-se meramente negativo na medida em que indica o mergulho no si impessoal e na fuga da questão metafísica sobre o sentido do ser. À inautenticidade de um mero viver à maneira de coisas, Heidegger opõe, ao menos em Ser e Tempo, a assunção do destino do ser humano à essência que lhe cabe: pensar o ser.

O evento, nessa senda, é apropriação do destino do ente cuja essência é pensar, não o seu sentido próprio, mas o sentido do ser. Por isso, Heidegger recusou a ideia de Sartre, presente na conferência O existencialismo é humanismo, de que o ser humano é o único ser cuja existência precede a essência, pois, primeiro existe, mas, dentro do horizonte do tempo, escolhe o que vai ser. O que Heidegger critica é o fato de Sartre reduzir a questão ontológica à questão antropológica. Portanto, a saída para vida inautêntica seria o evento de se apropriar do pensar cuja destinação é pensar o ser para além de qualquer ente ainda que somente pelo ente a questão do ser se torna visível.

Em Heiddeger, as análises do cotidiano, muitas vezes, se aproximam da análise de Marx sobre o fetichismo da mercadoria. Diante de um determinado objeto, Heidegger apreende elementos que estão articulados à experiência cotidiana numa visão mais abrangente, atingindo um sistema de referências que, apesar de não vinculados ao modo de produção, já apresenta dimensões da realidade que uma teoria do juízo não abarca.

A própria figuração do conhecimento como a relação entre um sujeito cognoscente, desprovido de historicidade, e de um objeto de estudo, destituído de movimento, é superado pelo reconhecimento da facticidade do ser-aí que, desde sempre, já está mergulhado numa visão prévia do mundo. Toda compreensão já está estruturada numa pré-compreensão. O círculo hermenêutico, diz Heidegger, não é um círculo vicioso. A questão, nesse contexto, não é negar o círculo, mas saber se inserir nele desde que as pré-compreensões sejam norteadas e voltadas à retomada das coisas mesmas. Mas em que consiste esse retornar às coisas mesmas?

A filosofia da libertação, na linhagem de Levinas e desenvolvida por Enrique Dussel, parte da ideia de que a ética é a filosofia primeira e não se concebe como construção de enunciados. Significa, sobretudo, uma atitude diante do desafio que o rosto do Outro, o Outro excluído, lança à filosofia que, rompendo a ontologia do neutro, assume a responsabilidade desinteressada diante de outrem. Se a rostidade em outros pensadores se apresenta como a figura do poder, na filosofia da libertação, ao partir desde a América Latina e das contradições lancinantes e pungentes das formações submetidas à espoliação colonial, o Rosto é sempre o rosto dos indígenas, dos negros, das mulheres, das crianças. A filosofia da libertação se engaja na totalidade aberta em que a questão da classe, gênero, raça e faixa etária demanda uma lógica analógico-dialética. É dos rostos, que colocam em questão, na premência de sua presença, desde um não-lugar, a injustiça intrínseca das formações sociais capitalistas, que a filosofia da libertação parte. (2)

Mas o responder à interpelação do Outro exige, operando-se a redução fenomenológica, chegar à vida operante, reconhecendo-se que nem todos integram a comunidade de comunicação, que a brutalidade do poder nas formações periféricas não instaura nenhuma comunidade já que prevalência do ego colonial rompe sistemática e diuturnamente as premissas básicas do discurso, dentre elas, o reconhecimento do outro como legítimo outro. A análise da limitação da comunidade da comunicação à branquidão exige um giro decolonial que, inevitavelmente, vai se ver a braços com a centralidade da discussão econômica.  

Esse giro é de fundamental importância porque o que caracteriza a filosofia denominada pós-moderna é a neutralização da questão econômica e a decorrente resignação ou, pior, da capitulação ante o capitalismo. A demonstração da limitação da comunidade da linguagem, inclusive pelas análises dos confrontos históricos, faz que a filosofia da libertação tenha visto a necessidade de estabelecer a pragmática econômica antes da pragmática linguística.

Sendo o modo de produção capitalista marcado pela lei absoluta da produção de mais-valia, isto é, pela extração de mais-trabalho, e, tendo em vista a divisão internacional do trabalho na dinâmica mundial, verifica-se que, na América Latina, a irracionalidade do capitalismo se acentua em contradições expressas em formas de exploração ainda mais intensa do que as existentes no centro do sistema-mundo.

A totalidade do capitalismo é autorreferente e se enucleia na necessidade de reproduzir as condições para a produção de mais-valia nada tendo que ver com as necessidades reais dos seres humanos. Totalidade tão fechada que a vida humana nada mais é que um mero episódio na produção de mais-valia (3). Mas todo sistema autorreferente encontra aporias e contradições que abalam sua consistência superficial e ideológica.

Desde Hegel, a concentração de riquezas sempre esteve intrincada com a produção de desigualdades. O que abala a totalidade fechada do capital é a presença da exterioridade do Outro cuja apresentação é irrepresentável na juntura da laminação unívoca da ordem e, na medida em que se organiza e busca furar os espaços pétreos das hierarquias, evidencia as injustiças e anuncia a crítica e a práxis transformadora. Toda tarefa reativa da ordem é para fazer o Outro irrepresentável apenas representado na dinâmica interna colonial sob a perspectiva do inimigo. Imagens, representações e aparatos coercitivos são mobilizados para que a verdade traumática da injustiça intrínseca da totalidade autorreferente não se manifeste nas suas fragilidades, para que se coarcte, de todas as formas, a elucidação advindas das formas organizativas das classes dominadas e dos intelectuais orgânicos.

A filosofia da libertação, portanto, encontra-se no plano de imanência em que a premissa da ética do Outro exige a critica das formações econômicas na modernidade periférica: a injunção de ouvir as vozes históricas dos pobres engaja a necessidade de transformação da economia desde outras bases, desde a superação analética da lei absoluta da extração de mais-trabalho, que informa o capitalismo.

Podemos afirmar, com Aristóteles e com Hinkellamert, que, no capitalismo, a economia deixar de ser o lugar de reprodução da vida para se converter em crematística, isto é, o lugar de circulação do capital financeiro sem qualquer mediação produtiva. No estágio atual do capitalismo, a economia vira um espectro sem qualquer natureza produtiva (7).

Em Verdade e Método, Gadamer afirma que a filosofia se realiza na escuta do logos, para a filosofia da libertação, e a geração que o segue, a filosofia se realiza no cruzamento entre a ética e a política e a pragmática econômica, para, ouvindo as vozes dos povos desapropriados, possamos no apropriar coletivamente da vida em suas mais variadas dimensões. Devemos perguntar: que novos mundos podemos fazer coletivamente? (8)

  1. Poema que dediquei a quem viveu a ética da coragem:

Todo nome de Maria esplende em teu périplo
São mães Luandas, mãos de Dakar
Toda Maria colheu no vão dos negreiros navios
Teceu e urdiu teu estandarte para que pudesse cerzir
Em dor e festa a consagração de uma aurora inexorável

No abismo do tempo alteiam-se
A maré e a fibra das verdades gizadas pelo teu passo;

O peso do chumbo e a covardia dos salteadores
São inócuas para desbotar as amoras e as américas nascidas
Em tuas madeixas
Porque o que movem Marias se alinha aos equinócios dos povos,

Todas as constelações expandirão mais brilho até ofuscar as opressões
No instante mesmo em brotam mais Melodias
E a certeza de que a história irá parir mais de teus filhos
Todo nome de Maria, Marielle, esplenderá

  • O desafio da linguística é resolver essa dualidade. Habermas, em outras obras, reinvindica o conceito de objetividade e de referência, incorporando aspectos da semântica.
  • Penso que à ontologia de Heidegger é preciso opor a ontologia de Levinas e da Badiou.
  • Em Teoria do Sujeito, livro fundamental e de atualidade gritante, Badiou usa o termo fora-do-lugar (horlieu) para fundar a lógica dialética. O que está inscrito sob a forma de opressão é o que, quando se organiza, questiona o Um enquanto organização dos lugares da dominação. A meu ver, Teoria do Sujeito é a obra mais importante de Badiou, cujo estilo difícil faz torcer a língua francesa para mais bem expressar na língua mesma a torção dialética. Obra fundamental para quem quer compreender a lógica dialética.
  • No Livro Apel, Ricoeur, Rorty y la filosofia de la libertácion, Dussel apresenta o modo como Alvarado sobrecodifica o texto Bíblico sobre o texto do Popol-Vuh dos Mayas. A análise das sobrecodificações eurocêntricas são cruciais para a consolidação da hermenêutica decolonial.
  • Penso que a crítica de Dussell é dirigida à noção de totalidade fechada e não à totalidade aberta, que caracteriza a verdadeira dialética. A remissão a Sartre confirma essa tese.
  • O filme Cosmópolis, de David Cronenberg, demonstra a disseminação do capital que se desgarra de qualquer atividade produtiva para se tornar a circulação autorreferente de dinheiro: o capitalismo como espectro. O processo de desindustrialização da América Latina é uma prova dessa tese.
  • O grande desafio teórico-prático é pensar as formas de organizações coletivas que tenham a capacidade de formar um bloco nacional-popular-revolucionário. Nesse sentido, Alberto Guerreiro Ramos, já nos de 1960, salientava que a teoria da organização é a chave-mestra para a disciplina coletiva das transformações. Nesse sentido, a forma-partido não está perempta, mas deve ser capaz de fazer o trânsito entre os movimentos de bases e a institucionalidade sem fetichizar-se e ter um programa capaz de aferir a totalidade. Também, o corte para definir a esquerda se torna mais simples: é de esquerda quem luta a favor de um novo modo de produção. O resto é pálida oposição consentida e bazófia. Ver: RAMOS, Alberto Guerreiro. Mito e verdade da revolução brasileira. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1963.

BIBLIOGRAFIA BÁSICA DA OBRA DE ENRIQUE DUSSEL

  1. DUSSEL, Enrique. Método para uma filosofía de la liberación: superación analéctica de la dialectica hegeliana: Salamanca, Ediciones Sígueme, 1974. Obra fundamental para entender o método analético.
  2. DUSSEL, Enrique. 20 tesis de política. México: Centro de Cooperação Regional para la Educación de Adultos da América Latina y el Caribe, 2006.
  • DUSSEL, Enrique. El último Marx y la liberación latino-americana: un comentario a la tercera y a la cuarta redacción de “El Capital’’. Obra fundamental para fundar a verdadeira ortodoxia marxista. Nela, os conceitos de trabalho vivo, subsunção e, especialmente, a distinção entre valor e fonte criadora de valor se apresentam no esclarecimento cabal de Marx. Seguindo a linha desse grande filósofo, desenvolvi esses conceitos marxianos. Ver: NASCIMENTO, Luís Eduardo Gomes do. Os quilombos como novos nomos da Terra: da forma-valor à forma-comunidade. Minas Gerais: Dialética, 2020.

Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, advogado e professor da UNEB.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *