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A CRISE DO MODO DE PRODUÇÃO CAPITALISTA E A QUESTÃO FULCRAL DAS FONTES CRIADORAS DE VALOR

Ao Camarada Stálin

Marx enuncia que uma formação social entra em crise quando o modo de produção não corresponde mais ao desenvolvimento das forças produtivas. No caso do modo de produção capitalista, o enunciado de Marx entra numa espécie de conurbação, pois, ainda que na sua gênese o capitalismo tenha desenvolvimento de forma inaugural e exponencial as forças produtivas, vemos, a olhos vistos, uma crise geral do conhecimento que se manifesta de forma plena no plano da crise da produção.

Fizemos a distinção, ainda em crisálida na teoria de Marx, entre valor e fontes criadoras de valor. Na medida em que a circulação de mercadorias não explica o surgimento do valor, Marx verbaliza que são duas as forças criadoras de valor: natureza e trabalho vivo. Em sendo Aristóteles uma das fontes axiais do pensamento dialético, podemos averbar que são seis as fontes criadoras de valor: natureza, trabalho vivo, ciência, tecnologia, técnica e arte.

Hoje, a crise se entronca na crise do pensamento científico e da ausência de tecnologias voltadas não só ao incremento da produção, mas à produção da produção. De forma clara: a repressão do pensamento engendrou uma crise da tecnologia e, por corolário, da produção. O que pesa sobre o modo de produção capitalista é que não produz mais.

Gramsci enuncia, de forma genial, que a tecnologia, mesmo que oriundas das injunções militares, acabavam por se destacar, expandindo-se para outras áreas, sobremodo, à produção. Por isso, em razão do descompasso preludiado, as grandes potências possuem o monopólio de tecnologias de espionagem e não as voltadas à produção. Digamos de forma clara: a crise do capitalismo é a crise da produção. E por qual razão? O baixo desenvolvimento científico, o qual  se revela claramente na ênfase da lógica do prestígio. Em épocas de desenvolvimento científico, o conhecimento é operante e pragmático, isto é, voltado à resolução dos problemas que emergem da vida em coletividade e não show business.

Nesse sentido questão central foi esboçada por Alberto Guerreiro Ramos ao enunciar que todas as questões passam pela teoria das organizações e pela redução tecnológica.

A irracionalidade do capitalismo contemporâneo não resolve a questão. O fato de o capitalismo financeiro tentar se autonomizar em face da produção leva, claramente, à implosão do próprio sistema financeiro e demonstra mais claramente que a atual crise do capitalismo. Como reprimiu as forças produtivas não produz mais.

O problema do modo de produção capitalista é um problema de produção. Um modo de produção quando não mais produz não pode ser chamado de modo de produção. Por isso, sem ironia, podemos dizer que o capitalismo não é mais um modo de produção e coloca em risco a humanidade.  

Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado, Professor do Departamento de Ciência e Tecnologia, Campus |||, Juazeiro, Bahia, UNEB.

A ATUALIDADE DO GESTO ESTRUTURALISTA E O DECLÍNIO DO CAPITALISMO

“O desenvolvimento rápido da troca é a característica da época em que escreve Sismondi” Lenin

Às vezes, é salutar estabelecer um debate traçando um paralelo. O livro O estruturalismo e a miséria da razão de Carlos Nelson Coutinho padece de várias fraquezas teóricas. Subjaz ao livro a repetição acrítica de Lukács contra o então emergente estruturalismo. A ideia central é colocar a ontologia social de Lukacs contra a ênfase que, segundo o autor, o estruturalismo coloca nas questões epistemológicas, recaindo muitas vezes em um realismo ingênuo e metafísico. O autor refuta Saussure de forma hilária.

Para Saussure, a língua é forma e não substância. Para um olhar acurado, Saussure usa a palavra substância no sentido metafísico de um todo orgânico, unívoco. Nelson Coutinho, por sua vez, invoca alguns autores para defender que a língua é substância, conferindo ao termo um sentido diverso do enunciado por Saussure.

Ao autor brasileiro escapou o essencial: Saussure, ao enunciar corretamente que a língua é uma forma, adota o viês sincrônico, deixando de lado o diacrônico. É este o problema do estruturalismo que permaneceu incompleto: às interessantes e instigantes análises internas dos sistemas não se seguiram as análises históricas que pudessem explicar a transição das formas.

Na parte em que trata de Althusser a coisa piora. Os conceitos mais importantes de Althusser são deixados de lado talvez porque Nelson Coutinho não tinha muito conhecimento de psicanálise. A noção fecunda de causalidade metonímica e a reinvenção do conceito freudiano de sobredeterminação nem sequer são mencionados.

É um clichê dizer que Althusser tenha lido Marx desde o jargão estruturalista. Mas para além disso, pode-se verificar que entre Lukács e Louis Althusser existem mais pontos de encontros do que divergências. Na verdade, os conceitos de um se enriquece com o do outro sem incorrer em ecletismo, esta prótese retórica de quem se acostuma ao monolitismo.

Marx, sobretudo em O capital, trata as questões da forma de maneira muito similar ao estruturalismo. Não é novidade as aproximações entre as análises do signo em Saussure e a análise da forma-valor em Marx. Recentemente, Kojin Karatani confirmou a força desta analogia.

Enfim, não devemos subscrever acriticamente o que se produz em outras partes do mundo, mas também devemos encetar uma critica que, antes de tudo, possa compreender corretamente o que se critica.

Em 1953, uma cartilha polêmica já dizia da necessidade de superar a sociologia enlatada.

E o gesto genial de Karatani não tem sido a possibilidade de esboçar a grande lógica, mas, ao enunciar as inúmeras paralaxes do momento, entender a necessidade histórica do estruturalismo. Sentimo-nos familiares a este gesto.

São muitas confluências: a inserção do Estado e da Nação como elementos chaves da análise econômica, numa pequena discordância com Marx que se esclarece quando da análise diacrônica da questão; a compreensão das várias formas históricas do capitalismo ou a transição das formas dos modos de produção; um melhor ajustamento da questão do comunismo primitivo e do modo de produção asiático; a compreensão fundamental de que os modos de trocas e os modos de produção não são antíteses, mas desenham a necessidade de novos estudos e a própria releitura da obra de Marx para desvelar esse aspecto; a libertação da antropologia para compreensão das graves questões econômicas; a inserção, numa linha hegeliana mesmo inconsciente, do sistema ético junto aos sistemas de trocas; a compreensão das razões das crises cíclicas do capitalismo. O capitalismo reprime as contradições, mas hoje as contradições implodem o capitalismo. São pequenas observações sobre obra que me lembra Lenin falando sobre Engels: cada frase condensa uma tese. Em dois parágrafos, refuta Negri e Hardt para mostrar que, no núcleo do capitalismo, num lance teórico crucial para a adequada compreensão do presente, não é a multipolaridade que prevalece, mas a existência de várias formas de imperialismos que, num longo período de consenso, esbatem-se e debatem-se perdidos na contradições e implosões internas. A China esfacelada pelo chauvinismo incompetente e iletrado, a Rússia impotente e incapaz de retomar o legado da ciência operária que a tornou hegemônica em setores essenciais, os EUA em desintegração econômica e social interna e diante da implosão do sistema financeiro que encabeça e os emergentes em estado de crisálida.

E algo que podemos acrescentar é que, no capitalismo, os nacionalismos que prevalecem são identitários, isto é, de má-identidade. As hegemonias são identitárias. Hegel chama de má identidade aquela que não se abre às diferenças e estabelece o outro como inimigo. Sem esquecer que, na história, há o nacionalismo operário.

Trata-se do maior pensador da atualidade cuja obra abre caminhos novos, novos paradigmas, inclusive de leitura, e novos horizontes políticos e econômicos. É uma clivagem na filosofia para que o verdadeiro universal emerja na sua limpidez e força.

Enfim, podemos dizer, conforme disse a um jurista argentino em 2007, que o século XXI será o século do marxismo. O Capital, de Karl Marx, é o embrião indeclinável e ineliminável de várias ciências e, sobretudo, da economia política marxiana que ainda está por fazer. Marx elaborou as ferramentas conceituais essenciais, cabe-nos desenvolvê-las para que mais bem possa retinir o brilho inconteste da dialética.

Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado, Professor do Departamento de Ciência e Tecnologia, Campus |||, Juazeiro, Bahia, UNEB.

POR QUE MARX INVENTOU O SINTOMA?

Marx afirma que, quando foi redator na gazeta renana, foi constrangido a tratar de problemas materiais. A que problemas materiais se referia? Nesse momento de inquietude filosófica, a filosofia é interpelada a discutir as questões de terra e a condições sociais dos camponeses. É um instante decisivo em que Marx trava uma verdadeira batalha semiológica. Analisa os textos legais, lê, apressurado, os artigos da imprensa e, no rastro da linguagem, identifica, pela primeira vez, que a sociedade não é um todo orgânico, mas marcada por contradições que são ocultadas pela inversão ideológica dos problemas. É no analisar a forma com que, na Inglaterra, se colocou a questão da miséria que Marx enxerga o sintoma. É no terçar das armas das críticas que Marx inventa o sintoma.

Para Lacan, Marx inventou o sintoma não no sentido de uma criação arbitrária, mas por ter, pela primeira vez, visto e enunciado um problema que estava no real sem ter sido elevado ao plano da linguagem. Inventar o sintoma é entender a racionalidade da contradição, isto é, que uma contradição indica um conflito incontornável e que a maneira com que se tenta esconjura-lo já desnuda o próprio conflito. Inventar o sintoma, pois, é elevar à presença da linguagem uma questão ainda não formulada, mas em estado de latência na prática social.

Marx só identifica o sintoma quando, pela análise do discurso, por uma semiologia social rigorosa, visualiza com clarividência as racionalizações que desorientam as questões, lançando-as para o plano em que não podem ser resolvidas a não ser imaginariamente ou reprimidas de forma cruenta pela violência.  Marx entende logo a inversão ideológica quando a questão da pobreza é colocada sob a perspectiva da culpabilidade do próprio cidadão excluído e pele sobrecodificação da questão social pela questão criminal. Em Glosas Crítica assertoa:

O Parlamento inglês combinou essa teoria de caráter humanitário com o parecer de que o pauperismo seria a miséria infligida a si mesmo pelo trabalhador, não devendo, em consequência, ser prevenido como infortúnio, mas reprimido e punido como crime.

Marx, como semiólogo, nota as racionalizações e chega à borda da grande contradição: a produção de riqueza está atrelada à produção de miséria e, a partir dessa simetria inevitável nos marcos do regime de propriedade capitalista, desenvolveu o modelo teórico das lutas de classes (no plural analógico). As lutas de classes significam a impossibilidade de a sociedade capitalística se representar de forma não antagônica.

Os aparelhos ideológicos são mobilizados como racionalizações com vistas a obscurecer as lutas de classes, a torná-las meras diferenças, esvaindo-se seu caráter agônico – no sentido grego do termo. Laclau insere o populismo na lógica das demandas, mas, por diluir a categorias das lutas de classes, não consegue estabelecer uma linha de demarcação para orientação crucial das refregas políticas. As lutas de classes são obscurecidas pelas demandas que impedem a sociedade de saber buscar a própria emancipação econômica.

O progressismo vazio se enreda na difusão das demandas e não toca questão central: a discussão do modo de produção. Bolsa família, bônus e rendas básicas são fantasmagorias de quem não quer enfrentar a questão decisiva.  Enquanto a demanda indica o aprisionamento na circularidade vazia, a crítica marxista indica para a questão central pela qual se retoma o fio da meada: a batalha pelos modelos econômicos que, na América Latina, só poder ser empreendida pela unidade política da intersecção da classe operária e camponesa e os movimentos anticoloniais e anti-imperialistas.

Para Laclau, no plano político, deve imperar a razão populista, e, no plano econômico, a questão das classes econômicas. Ainda que seja engenhosa, e com largos conhecimentos linguísticos, faltou à teoria de Laclau a visão da totalidade e, onde vê determinações fixas, há a dinâmica inextrincável entre economia e política. Mais uma vez, o pensamento de Mao Tsé-Tung permanece vigente e vívido, sabendo articular de forma coerente a questão popular e questão de classe. Segundo o mestre, no contexto da guerra contra o Japão, povo era a união da classe operária e dos nacionalistas burgueses. Vencida a guerra, povo era a união entre a classe operária e os camponeses. Os termos são moventes analogicamente.

Só há política porque a contradição exige toda uma maquinaria deliberativa preordenada, em tese, à resolução dos problemas coletivos e que, ainda que se reifique, precisa mobilizar-se sob as várias formas reais ou imaginárias para impedir o deparar com as contradições. No capitalismo, a legislação torna-se simbólica numa simulação imaginária dos problemas pela proliferação de leis repletas de uma linguagem piedosa, mas carente de efetividade porque faltam as condições concretas para sua realização. A disseminação de leis é uma forma de a sociedade simular a solução de problemas que ela que não quer encarar. Em Constituição de Atenas, Aristóteles afirma que a constituição só se realiza se for superado o abismo entre ricos e pobres.

As lutas de classes, nesse sentido, constitui a condição de possibilidade da política. Só há política porque, no cerne do modo como se produz, cria-se uma superpopulação relativa, a qual, pela própria presença, ainda que não articulada sob a forma de organização política, ameaça a ordenação hierárquica da sociedade burguesa. Não é regressar à determinação unívoca, mas entender que só há política porque há um fosso entre ricos e pobres e que surge a necessidade de se criar instâncias de mediação institucional que, por mais neutras que se declarem, surgem mesmo dessa contradição ínsita à sociedade. O estado colonial, na sua gênese, não é o que reúne, mas o que surge para que evitar a dissolução ou o deparar com o caos básico da economia burguesa. Mas nada impede uma reorientação comunitária do Estado num sentido de construir, desde as bases populares, a reapropriação dos bens comuns.

Sartre diz, em Crítica da Razão Dialética, que foi a presença massiva da classe operária que fez o existencialismo entrar num ponto de bifurcação e aderir ao marxismo. A intuição é correta. Mas penso que, desde a América Latina, a questão é  a percepção da superpopulação relativa. O que caracteriza o modo de produção capitalista é a multiplicação dos proletários- diz Marx. E disse mais: o apanágio do sistema capitalista é a produção da superpopulação relativa. A superpopulação relativa existe em três formas: a) a líquida ou fluente; b) a latente; c) estagnada; o que significa dizer que, no plano do capitalismo, o pleno emprego é uma ilusão muitas vez azeitada por pesquisas sem base empírica e reformas superficiais que servem para camuflar a questão central.

Rosa Luxemburgo colocou a questão corretamente: não há que negar o valor em si das reformas; toda reforma que, ao mudar gradativamente a realidade social e econômica, aumenta a consciência para si do proletário e instila um anseio pela ampliação da democracia, constituindo passo essencial na transformação cabal das formações sociais, é viável. Admoestáveis são as reformas rasteiras- estilo bolsa família ou bónus familiares – que escravizam e são engendradas numa lógica neocolonial e coronelista.

É preciso reafirmar a centralidade da questão econômica e enunciar que o devir humano envolve a necessidade de um modo de produção comunitário em que o direito à vida, o direito à saúde e o direito ao trabalho sejam direitos universais e não submetidos à decisão de oligarquias reacionárias. E, para isso, retomar o conceito de que a economia é o campo de reprodução da vida e, não a circulação autorreferente de dinheiro sem lastro material, é o ponto de partida incontornável de toda pretensão política genuinamente de esquerda. O trabalho vivo e a natureza são as verdadeiras fontes criadores de valor[1].

Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.


[1]  “A relação em espiral entre economia e política constitui o ponto de partida ineliminável. O projeto neoliberal, para os países periféricos, se funda naquilo que Gunder Frank chamou de desenvolvimento do subdesenvolvimento. No atual cenário, o Estado deve se limitar a lastrear o pagamento da dívida pública. O suposto elogio do mercado capaz de, por suas leis, realizar o ótimo social é um desvio ideológico para subordinar o Estado ao papel subalterno de mero fundo de capital. Isso mesmo: o Estado só para os donos dos negócios. Digamos diretamente: não há burguesia que não seja estatal. Não é mera coincidência que a constituição de 88 com vinculação orçamentária e direitos sociais tenha sido objeto de crítica há muito; a ênfase na austeridade fiscal representa justamente essa subordinação ao capital financeiro pelo mecanismo da dívida pública: privatização, destruição dos serviços públicos para criar campo vasto ao setor privado como educação e previdência,  fim de investimentos sociais, acumulação de capital nas mãos de poucos, sendo os pequenos empresários sorvidos nesse processo (até onde vai a autofagia?); tudo isso, como disse Keynes refutando Hayek, gera o péssimo social cujo controle é entregue à política de Malthus e à máquina policialesca”.

IMPERIALISMO, DEPENDÊNCIA POLÍTICA E ECONÔMICA E AS LUTAS DOS POVOS PELOS BENS COMUNS

“Se eu sou, tu és”( São Paulo)

Karl Marx, quando analisa as formações sociais capitalistas, mesmo partindo da análise da mercadoria enquanto aparência da riqueza, já registra a tendência do dinheiro em se distanciar do processo de produção de mercadoria e em assumir uma autonomia excessiva. Em O Capital afirma:

“O dinheiro afasta as mercadorias constantemente da esfera da circulação, ao colocar-se continuamente em seus lugares na circulação e, com isso, distanciando-se de seu próprio ponto de partida’’ [1]

O capitalismo, no estágio atual, se caracteriza pela autonomização completa da forma-dinheiro de tal forma que os bancos, abandonando a condição de meros intermediários nos pagamentos, passam ao monopólio de praticamente todo o capital-dinheiro. Consoante afirma Lenin:

“À medida que os bancos se desenvolvem e se concentram num número reduzido de estabelecimentos, eles convertem-se de modestos intermediários que eram, em monopolistas onipotentes que dispõem de quase todo o capital-dinheiro do conjunto dos capitalistas e de pequeno patrões, bem como da maior parte de meios de produção e das fontes de matérias-primas de um ou muitos de países” [2]

A primazia da forma-dinheiro -enquanto circulação autorreferente sem mediação produtiva- derruba inúmeros mitos liberais como a livre concorrência e a austeridade fiscal. Com a concentração de capital-dinheiro, a tendência é as grandes empresas,

com apoio dos bancos e dos governos liberais, absorverem as pequenas, criando-se monopólios em áreas centrais da economia, encarecendo os preços, determinando-se quem terá acesso a certos bens e serviços. A exportação de capitais para os países de modernidade periférica converte a dívida pública em garantia dos credores internacionais e nacionais, transformando-se os Estados, submetidos à subjugação colonial, não em garantes universais dos direitos, mas em fundos de reserva do capital financeiro internacional e nacional.

Já a propalada austeridade serve, também, apenas para produzir reservas e recursos para garantir o pagamento de dívida pública inauditada pela compressão dos orçamentos públicos mediante a redução drástica dos gastos necessários à efetivação dos direitos econômicos e sociais.  Na verdade, o discurso de austeridade revela-se falacioso, pois, mediante corte nos setores essenciais como educação, saúde, seguridade social etc, fomenta-se, ao mesmo tempo, a dívida externa inauditada e a dependência econômica[3]. Enfim, a ‘austeridade’, nesse caso, serve para a perpetuação do endividamento dos Estados.

Não há que cair na mistificação dos aparelhos ideológicos das classes dominantes: estamos em plena vigência de agressivo e encarniçado imperialismo, o qual, conforme lição imperecível de Lenin, se caracteriza não pelo primado do capital-industrial, ligado à produção de mercadorias, mas do capital financeiro.

Então, verifica-se, especialmente pela reificação da política, convertida em mediação básica das condições de perpetuação do domínio do capital financeiro, uma partilha territorial do mundo, consistente na usurpação das riquezas minerais, fontes de água, terras agricultáveis, fontes de energia e etc, presentes em territórios de nações periféricas, suprimindo os povos das condições básicas de vida.[4] É o direito à vida dos povos que está ameaçado. Mas, como as questões centrais das formações sociais são submetidas à deliberação coletiva, a luta política, por isso, coloca-se como central. Não é por acaso que o capital-financeiro busca de todas as formas reificar a política, seja mediante o silenciamento dos intelectuais e líderes populares orgânicos, seja mediante o financiamento a partidos, inclusive os de ‘esquerda’, retirando, para citar Mao Tsé-Tung, o caráter antagônico da contradição política, permitindo o surgimento apenas de ‘políticos’ comprometidos com a reprodução dos meios e condições necessárias à perpetuação da lógica rentista. O capital financeiro, por intermédio da

reificação política, tem suprimido a autodeterminação de inúmeros Estados na modernidade periférica para levar a cabo a empresa nefanda de pilhagem de riquezas naturais. Nessa conjuntura, a América Latina cumpre um papel geopolítico inestimável e a luta por autodeterminação, por isso mesmo, se confunde com a luta pelo direito à vida.

Se o capital financeiro busca reificar a política, cabe aos povos radicalizar as lutas políticas e assumir a vanguarda da luta pelos bens comuns, salvaguardando o futuro da humanidade. Já Hegel, ao defender um direito natural dialético, afirmava que os bens comuns como a água, ar e etc não podem ser submetidos à irracionalidade do domínio privado, mas à racionalidade publico-comunitária.

Por: Luís Eduardo Gomes do Nascimento, Advogado e Professor da UNEB.


[1] MARX, Karl. O Capital: Crítica da Economia Política. Vol 1. São Paulo: Nova Cultura, 1988, p. 100. A fórmula do capital não é mais M-D-M (mercadoria-dinheiro-mercadoria), mas D-D (dinheiro-dinheiro). A leitura dos 5 volumes dessa obra-prima do pensamento humano é crucial para entender todos os artifícios do capital. Marx já previra a conversão dos Estados em fundo de reserva de capital mediante a confusão entre dívida pública e bolsa de valores.

[2] LENIN, V.I. Imperialismo, estágio superior do capitalismo. 1ª edição. São Paulo: Expressão Popular, 2012, p. 55.

[3] No caso do Brasil, tivemos partidos pretensamente de esquerdas, consolidando, mediante financiamento de bancos públicos, monopólios no setor de alimentação. O cinismo chega ao ponto máximo de se proclamarem, mediante discurso piedoso típico dos hipócritas, pioneiros da luta pela segurança alimentar. Resta salientar a importância da obra de Josué de Castro, intelectual perseguido pela ditadura explícita (1964-1985), que lutou, de forma pioneira, pela ideia de segurança alimentar.

[4] Sobre a centralidade político-econômica da noção de território, ver: NASCIMENTO, Luis Eduardo Gomes. Os quilombos como novos nomos da Terra: da forma-valor à forma-comunidade. Minas Gerais: Dialética, 2020.